quem sente

Ainda ontem pensava que não era 
Ainda ontem pensava que não era
mais do que um fragmento trémulo sem ritmo
na esfera da vida.
Hoje sei que sou eu a esfera,
e a vida inteira em fragmentos rítmicos move-se em mim.

Eles dizem-me no seu despertar:
" Tu e o mundo em que vives não passais de um grão de areia
sobre a margem infinita
de um mar infinito."

E no meu sonho eu respondo-lhes:

"Eu sou o mar infinito,
e todos os mundos não passam de grãos de areia
sobre a minha margem."

Só uma vez fiquei mudo.
Foi quando um homem me perguntou:
"Quem és tu?"

(Kahlil Gibran)



A iIha

Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites,
manhãs e madrugadas em que não precisamos de morrer.

Então sabemos tudo do que foi e será.

O mundo aparece explicado definitivamente e entra
em nós uma grande serenidade, e dizem-se as
palavras que a significam.

Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas mãos.
Com doçura.

Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a
vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o
sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do
mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos
ossos dela.

Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres
como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.
(José Saramago)


Carta aos Mortos

Amigos, nada mudou 
em essência. 
Os salários mal dão para os gastos, 
as guerras não terminaram 
e há vírus novos e terríveis, 
embora o avanço da medicina. 
Volta e meia um vizinho 
tomba morto por questão de amor. 
Há filmes interessantes, é verdade, 
e como sempre, mulheres portentosas 
nos seduzem com suas bocas e pernas, 
mas em matéria de amor 
não inventamos nenhuma posição nova. 
Alguns cosmonautas ficam no espaço 
seis meses ou mais, testando a engrenagem 
e a solidão. 
Em cada olimpíada há récordes previstos 
e nos países, avanços e recuos sociais. 
Mas nenhum pássaro mudou seu canto 
com a modernidade. 

Reencenamos as mesmas tragédias gregas, 
relemos o Quixote, e a primavera 
chega pontualmente cada ano. 

Alguns hábitos, rios e florestas 
se perderam. 
Ninguém mais coloca cadeiras na calçada 
ou toma a fresca da tarde, 
mas temos máquinas velocíssimas 
que nos dispensam de pensar. 

Sobre o desaparecimento dos dinossauros 
e a formação das galáxias 
não avançamos nada. 
Roupas vão e voltam com as modas. 
Governos fortes caem, outros se levantam, 
países se dividem 
e as formigas e abelhas continuam 
fiéis ao seu trabalho. 

Nada mudou em essência. 

Cantamos parabéns nas festas, 
discutimos futebol na esquina 
morremos em estúpidos desastres 
e volta e meia 
um de nós olha o céu quando estrelado 
com o mesmo pasmo das cavernas. 
E cada geração , insolente, 
continua a achar 
que vive no ápice da história.


(Affonso Romano de Sant'Anna)



Estão Se Adiantando

Eles estão se adiantando, os meus amigos. 
Sei que é útil a morte alheia 
para quem constrói seu fim. 
Mas eles estão indo, apressados, 
deixando filhos, obras, amores inacabados 
e revoluções por terminar. 
Não era isto o combinado. 

Alguns se despedem heróicos, 
outros serenos.Alguns se rebelam. 
O bom seria partir pleno. 

O que faço?Ainda agora 
um apressou seu desenlaçe. 
Sigo sem pressa. A morte 
exige trabalho, trabalho lento 
como quem nasce.

(Affonso Romano de Sant'Anna)