por Ricardo Tiezzi Eles sabem ler mas não compreender. Reconhecem números mas não conseguem passar das operações básicas. São os analfabetos funcionais, conceito criado pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) em 1978 para referir-se a pessoas que, mesmo sabendo ler e escrever algo simples, não tem as habilidades necessárias para viabilizar o seu desenvolvimento pessoal e profissional.
No campo quantitativo relativo à educação o Brasil avançou muito: começamos o século 20 com cerca de 65% de analfabetos, tendo baixado para 51% em 1950 e apresentado reduções mais drásticas só a partir de 1975, para chegarmos ao ano 2000 com 13% de analfabetos. Hoje são 8%. Mas na qualidade a coisa vai mal. Como ressalva o professor da FEA-USP, Daniel Augusto Moreira, “o problema do analfabetismo – entendido como a incapacidade absoluta de ler e escrever – costuma esconder um outro, tão ou mais perigoso, exatamente por passar despercebido a muitos: trata-se do analfabetismo funcional”. Vamos ver então o outro lado do analfabetismo.
As pesquisas mais confiáveis no Brasil são realizados pelo Instituto Paulo Montenegro, em parceria com a ONG ação educativa, que divulgam anualmente o Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional (INAF). Existem dados oficiais, do IBGE, mas que considera analfabetos funcionais os que têm menos de quatro anos de estudo. Isso torna o dado pouco confiável, pois o número de anos de estudo considerados como mínimo para se atingir um nível de alfabetização suficiente é relativo.
De acordo com os últimos dados do INAF, 75% dos brasileiros são considerados analfabetos funcionais. Isso mesmo: 3 em cada 4 brasileiros. Destes, 8% são analfabetos absolutos, 30% lêem mais compreendem muito pouco e 37% entendem alguma coisa mas são incapazes de interpretar e relacionar informações.
O estudo indicou que apenas 25% dos brasileiros com mais de 15 anos têm pleno domínio das habilidades de leitura e de escrita. Com relação à Matemática, o último INAF mostra que 77% são analfabetos funcionais.
Se olharmos o problema de uma perspectiva curiosa, para não dizer trágica, o Brasil começa o século 21 com um número maior de analfabetos funcionais do que tinha de analfabetos absolutos no começo do século passado. Ok, podemos ficar felizes que as pessoas sabem ler e escrever. Mas isso não lhes adianta de nada. Na Alemanha, a taxa de analfabetos funcionais é de 14%. Nos EUA, 21%. Na Inglaterra, 22% (para melhorar esta taxa, o governo britânico introduziu a "Hora da Leitura" no ensino fundamental ). Na Suécia, a taxa é de 7%. Estudantes da classe média brasileira lêem pior do que operários alemães.
Não é por acaso que o contingente de leitores de livros no Brasil seja tão pequeno em relação à população. Apenas 17 milhões de pessoas compraram ao menos um livro no último ano, 10% da população. Uma piada corrente nas rodas de editores, livreiros e escritores pode dar o tom preciso da história da literatura no Brasil. Na véspera do aniversário de um amigo, um rapaz, amante das letras, conta entusiasmado ao colega que vai presenteá-lo com um livro. O aniversariante, constrangido, diz: "Obrigado, mas eu já tenho um".
A média anual de leitura entre os que lêem é de 12 obras e a compra per capita de livro não-didático por adulto alfabetizado é de 0,66. Se comparado a países desenvolvidos, a média de leitura por habitante é lamentável. No Brasil, esse índice é de 1,8, contra 7 da França, 5,1 dos Estados Unidos, 5 da Itália e 4,9 da Inglaterra. Em todas as nações desenvolvidas, metade da população é razoavelmente letrada, o que tem favorecido o progresso. Como mudar esse árido cenário? Estudos internacionais indicam que é necessário perceber que a familiaridade com a leitura não é adquirida de forma espontânea. A experiência mostra, segundo o Ministério da Cultura, que as nações avançadas produzem seus leitores em larga escala. Em todas elas, os fatores infra-estruturais envolvidos na de geração de leitores revelaram-se os mesmos: estímulo à leitura na família e na escola.
E, óbvia e urgentemente, investir na qualidade da educação para extirpar o analfabetismo funcional. “Afinal, vivemos na chamada ‘sociedade do conhecimento’, na qual os neurônios são muito mais importantes do que os músculos”, ressalta o empresário Antonio Ermírio de Morais, em artigo na Folha de S. Paulo. E lembra: “Nenhum país consegue crescer 5% ou 6% ao ano por muito tempo com uma população tão mal preparada.”
Para a professora Cileda Coutinho, da PUC-SP, “não adianta mudarmos currículos, fazermos projetos, se não trabalharmos tudo ao mesmo tempo. Projetos isolados não vão produzir resultados se não estiverem no bojo de um trabalho maior e contínuo”. O educador, escritor, teólogo, psicanalista e professor emérito da Unicamp, Rubem Alves, vai mais longe nas transformações de que necessita a educação no Brasil. “A escola tradicional é construída no modelo da linha de montagem, tempo mecânico. Então se transforma em uma experiência de sofrimento, e as crianças não aprendem. Eu acho que o caminho da reforma da educação não passa por novas tecnologias, nem novas ciências. Sendo romântico: passa pelo coração.”
Em artigo na Folha, o jornalista Gilberto Dimenstein, lembrou que um dos mais graves problemas de somente um grupo seleto ser alfabetizado funcionalmente aparece em momentos decisivos como das eleições municipais prestes a acontecer: “Vamos falar quase exclusivamente para o Clube dos 20%, apresentando números, estatísticas, enquanto a maioria vai se encantar com os delírios embalados pelo marketing. Isso pela simples e óbvia razão de que, com baixa escolaridade, a democracia será sempre uma simulação de representatividade.” Leia mais: Letramento no Brasil, de Vera Masagão (org) Editora Global Fomos Maus Alunos, de Rubem Alves e Gilberto Dimenstein Editora Papirus Analfabetismo Funcional: o Mal Nosso de Cada Dia, de Daniel Augusto Moreira Editora Pioneira-Thomson Learning Site do Instituto Paulo Montenegro www.ipm.org.br |